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2.5.2020
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Equipe Afya Educação Médica
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Você já parou para pensar como seria difícil construir a relação médico-paciente sem a garantia do sigilo profissional? Ele é um dos pilares da relação médico-paciente, garantido na Constituição Federal e regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina por meio do Código de Ética Médica. Protege a intimidade do indivíduo durante o atendimento de saúde e evita que sua privacidade seja violada sem seu consentimento.
Profissionais que descumprem a confidencialidade podem até mesmo responder na Justiça, conforme previsto no Código Penal. Sua relevância é tamanha na prática médica que muitos profissionais da medicina estabelecem as bases do diálogo com seus pacientes na confidencialidade. Vamos entender melhor como isso funciona?
O Código de Ética Médica é muito claro quando diz que é vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. O sigilo profissional, chamado também de confidencialidade, é uma obrigação ética do médico e garantia do paciente de que as informações fornecidas no momento do atendimento de saúde sejam mantidas em sigilo, independentemente do teor, da área de atuação do profissional e da condição do paciente, incluindo informações obtidas de menores de idade.
Em algumas áreas específicas da medicina a confidencialidade se apresenta não apenas como questão inerente da profissão, mas como pedra fundamental na construção de confiança com o paciente. A conversa do médico com com o indivíduo sobre o sigilo é uma das principais estratégias para estabelecer uma boa comunicação e o estabelecimento de um quadro realista de saúde, o que impacta até mesmo a adesão ao tratamento.
O sigilo profissional é especialmente importante para as categorias médicas que tratam pacientes vulneráveis, com danos severos e com condições de saúde consideradas tabus na sociedade.
Na prática médica não faltam exemplos de como a confidencialidade é fundamental para a prática profissional. Há categorias como a ginecologia e a urologia, por exemplo, em que o sigilo é argumento chave da retórica do profissional com o paciente. Homens e mulheres que chegam ao consultório destes médicos esperam de antemão que o atendimento ocorra da forma mais sigilosa possível, uma vez que ainda existe na sociedade estigmas e preconceitos relacionados ao cuidado com determinados órgãos e partes do corpo.
É o que acontece quando uma adolescente chega ao consultório de ginecologia pela primeira vez e espera do médico um ambiente confortável e seguro por meio da comunicação do sigilo das informações que irão compartilhar no atendimento. Essa atenção à confidencialidade deve acontecer desde o momento da recepção, com a devida instrução de todo o corpo profissional da clínica sobre o sigilo do paciente. Mesmo jovens com certa experiência de visitas ao ginecologista podem ter dificuldade de se expressar dependendo da sua condição de saúde, como a ocorrência de uma gravidez indesejada ou a descoberta de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis.
Na área da urologia, outro segmento que tem no sigilo os alicerces do atendimento, pacientes do sexo masculino que tratam disfunção erétil, por exemplo, buscam o máximo de sigilo possível desde o primeiro momento do atendimento, nas salas de espera separadas da recepção, ao uso de códigos na identificação de prontuários médicos para evitar a exposição da pessoa para o time de profissionais da unidade de saúde.
O profissional infectologista também está acostumado com esse tipo de atenção e abordagem do sigilo médico. Como geralmente lida com pacientes com suspeita ou confirmação de resultado para doenças infectocontagiosas, é de sua rotina apresentar a confidencialidade como parte do fazer de sua medicina. Somente através do diálogo aberto e do estabelecimento de confiança com o paciente no consultório por meio do sigilo profissional o infectologista consegue traçar um quadro preciso sobre a condição de saúde do indivíduo. Pacientes contaminados com determinados vírus, como o estigmatizado HIV, podem cair em negação e mentir sobre seu estado de saúde ou comportamento de risco, por exemplo. Sem uma estratégia clara de diálogo e confidencialidade seria impossível coletar informações destes pacientes.
A crise de saúde pública provocada pela Covid-19 iniciou uma corrida pela busca de medicamentos já existentes no mercado que possam auxiliar no tratamento dos doentes. Neste cenário de pandemia um mal estar foi criado entre autoridades de Saúde que contraíram a doença, fizeram uso de fármacos específicos tidos como potencialmente promissores e se curaram: violar ou não o sigilo sobre o tratamento por um clamor de parte da sociedade?
Outro profissional que constantemente lida com a questão da confidencialidade é psiquiatra. No momento do atendimento, eles abordam temas extremamente delicados com seus pacientes, conversas difíceis e íntimas que podem causar sofrimento e um bloqueio na comunicação. Muitas vezes esse atendimento é trabalhoso, exige habilidades específicas de convencimento e diálogo do profissional, em que a própria existência do sigilo médico-paciente é utilizado como argumento para extrair informações do paciente e traçar um diagnóstico preciso de sua condição de saúde mental.
Embora a confidencialidade seja uma cláusula ética e moral da profissão, existem situações em que sua violação é justificável por diferentes motivos, embora ainda ocorram enormes debates sobre a prática da quebra do sigilo. A violação, entretanto, deve ser evitada ao máximo e, quando necessária, comunicada ao paciente com antecedência para que ele não seja pego de surpresa.
A primeira situação - e mais simples - ocorre quando o próprio paciente autoriza por escrito o médico a compartilhar as informações obtidas no atendimento. Essa possibilidade é aberta, por exemplo, a casos em que os dados colhidos pelo médico podem auxiliar estudos técnicos-científicos, políticas corporativas de planos de saúde ou de esfera pública. Essa autorização nem sempre é fácil de ser obtida, o que demanda do médico a apresentação de argumentos que convençam o paciente de que os dados colhidos no atendimento vão, por exemplo, auxiliar centenas ou milhares de outras pessoas com problemas de saúde parecidos.
Há também os casos em que a avaliação da quebra de sigilo depende do próprio profissional. Médicos da área psiquiátrica, por exemplo, lidam com pessoas em situação de emergência psiquiátrica, definida como qualquer situação de natureza clínica em que ocorram alterações do estado mental, que representa risco para o indivíduo ou terceiros e necessita de intervenção terapêutica imediata. Nesses casos, o médico deve fazer uma profunda avaliação das condições de saúde mental daquele paciente e tomar sua decisão sobre quebra ou não do sigilo.
Fonte: Aspectos Ético-Legais nas Emergências Psiquiátricas - A confidencialidade pode ser violada também quando a Justiça determina baseada em argumentos legais. Em alguns casos as informações obtidas pelo médico durante o atendimento pode ser de interesse do conjunto da sociedade e ocorre a solicitação legal para o acesso aos dados. A Justiça pode ainda determinar a quebra do sigilo em uma situação que coloca em risco o próprio paciente, terceiros ou a toda a sociedade, como nos casos de crimes violentos, além de violência infantil e doméstica.
Outro caso em que há possibilidade da quebra do sigilo profissional diz respeito a algumas doenças específicas, como aquelas que possuem a chamada notificação compulsória, causadas por agentes infecciosos como vírus e bactérias. Esses casos precisam ser relatados às autoridades de saúde como forma de disponibilizar dados para a construção de políticas públicas que protejam toda a sociedade.
Existe ainda um grande debate na comunidade médica que envolve as motivações para quebra do sigilo profissional. Há inúmeros casos reais e situações hipotéticas que provocam reflexão e devem ser analisadas caso a caso.
Um exemplo: uma jovem menor de idade é atendida sozinha no consultório de ginecologia e fornece informações que podem ser de interesse dos pais, como uma gravidez indesejada e mesmo o desejo de realizar um aborto. O médico deve informar os pais? Em primeira análise, o médico deve estabelecer um pacto de confiança com a paciente, de forma que ela tenha ciência do seu direito ao sigilo. Contudo, é importante que ele reafirme que em algum momento esse pacto pode ser violado se ele sentir que é necessário.
Outro exemplo: um infectologista registra um caso de homem soropositivo para o HIV que está em um relacionamento fixo. Por meio do diálogo sigiloso com o paciente o profissional descobre que a infecção ocorreu em uma relação extraconjugal. O paciente revela que não pretende abrir a situação para sua cônjuge. O profissional deve informar a esposa sobre esse fato, visto que ela está exposta ao perigo de infecção? Segundo a lei brasileira é proibido divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids com intuito de ofender-lhe a dignidade. Ao mesmo tempo, a lei considera que o médico comete crime se não denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória.
Como você procederia nesses casos? O sigilo profissional lhe auxilia no seu atendimento? Em que situações você acredita ser possível violar a confidencialidade?